Texto muito bom de Cesar Mondini... Tem o tom do blog e fomenta uma discussão e uma reflexão bastante importantes sobre um tema muito pertinente, de uma forma absolutamente precisa...
"Pensei em como escrever isso, e tudo soa mal. Porque a história é terrível.
Por uma série de acontecimentos me vi exclusivamente com um kilt para vestir. Era usá-lo para sair à rua ou ir de cueca. Fui.
Posso seguramente dizer que foi a experiência social mais traumatizante da minha vida. Brigas, agressões, comentários: nada disso jamais me atingiu como o que me aconteceu hoje: andar na rua com um kilt.
Eu já havia ouvido relatos e lido acontecimentos cotidianos sobre a opressão cotidiana que sofrem as pessoas trans*. Eu estava a par dos fatos. Mas sentir essa opressão foi no mínimo avassalador.
Adoro meu kilt. Feito pela minha mãe, eu arriscaria dizer que é a peça do meu guarda roupa que mais me agrada. Toda vez que há uma festa a fantasia lá estou eu de escocês. Isso porque uso a fantasia como desculpa para usá-lo. Não estou ali de escocês. Estou ali de Cesar. Só que nunca tive coragem de vesti-lo e sair a rua. Como eu disse eu estava, e todos nós estamos, cientes do machismo e da transfobia que nos circunda e que repetimos, e eu cuidadosamente me protegi dessas agressões chamando uma peça que gosto de fantasia, de um excesso justificável.
Eu não andei de kilt a noite, indo pra uma festa, numa situação escusa ao mundo. Eu o usei num dia comum, andei de ônibus, fiz prova, passei em frente à igrejas, faculdades, pontos de ônibus e mercados, e em todos esses lugares eu me sentia observado e julgado. As pessoas paravam de comentar seus causos quando me viam e aí comentavam minha indumentária. Eu virara o causo. Uma piada. Uma alegoria de mal gosto.
Quando percebi eu estava com o maxilar tencionado, o rosto fechado. Estava me protegendo pela fisionomia. Notei então que pela primeira vez na minha vida eu estava com medo de apanhar na rua, de ser agredido por ser eu mesmo.
Um kilt não é uma saia feminina. Mesmo dentro do binarismo que nos aprisiona e em que somos imersos desde o nascimento me dá "respaldo" para usá-lo em público. Mas pelo fato de lembrar uma peça tipicamente feminina (em nosso país) ele se torna inadequado. Já aponta a todos que devo ser gay, promíscuo, sujo, caricato e desprezível. Houve época em que mulheres não podiam usar calças. Esses dias passaram, e esse "direito" lhes foi concedido. Mas um homem usar uma saia é uma transgressão ao patriarcado e a honra masculina. O machismo o condena e todos nós calamos ou reproduzimos seus ecos triunfantes de agressão.
Eu odeio as pessoas, desprezo a sociedade da qual faço parte e me sinto aprisionado em um fluxo que não vejo meios de conter, de reduzir, de transpor.
Cheguei em casa. Minha gata que dormia perto do portão se levantou e veio roçar-se em mim. Minha cachorra veio correndo do quintal e pulou sobre minhas pernas recobertas pelo kilt. Eu odeio as pessoas.
Se você frequenta uma igreja que diz que mulheres não podem usar calças e homens não podem furar as orelhas você é responsável pela travesti que morreu no seu bairro. Se você vai a um bloco de carnaval cuja "fantasia" são homens se travestirem de mulheres de forma jocosa você é responsável pela sua vizinha que foi espancada pelo marido. Se você faz piadas de "bichinha" você é responsável pelo gay que assassinaram na sua cidade. Se você diz que "é gay mas não é bicha" você é responsável pelo gerente do restaurante falar para você parar de beijar seu companheiro em público. Se você é contra a adoção de crianças por casais gays você é responsável pelo órfão que fuma crack na rua.
Responsabilize-se. Policie-se. Modifique-se. Desconstrua seus preconceitos voluntariamente. Não é ser politicamente correto. É uma questão de humanidade.
A quem quiser eu empresto meu kilt. Ele é bonito, confortável, elegante e de graça te faz ver o mundo de uma maneira muito mais verdadeira."
Despidxs
(texto postado originalmente em 3/11/2013)