quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Kilt

Texto muito bom de Cesar Mondini... Tem o tom do blog e fomenta uma discussão e uma reflexão bastante importantes sobre um tema muito pertinente, de uma forma absolutamente precisa...

"Pensei em como escrever isso, e tudo soa mal. Porque a história é terrível.
Por uma série de acontecimentos me vi exclusivamente com um kilt para vestir. Era usá-lo para sair à rua ou ir de cueca. Fui.
Posso seguramente dizer que foi a experiência social mais traumatizante da minha vida. Brigas, agressões, comentários: nada disso jamais me atingiu como o que me aconteceu hoje: andar na rua com um kilt.
Eu já havia ouvido relatos e lido acontecimentos cotidianos sobre a opressão cotidiana que sofrem as pessoas trans*. Eu estava a par dos fatos. Mas sentir essa opressão foi no mínimo avassalador.
Adoro meu kilt. Feito pela minha mãe, eu arriscaria dizer que é a peça do meu guarda roupa que mais me agrada. Toda vez que há uma festa a fantasia lá estou eu de escocês. Isso porque uso a fantasia como desculpa para usá-lo. Não estou ali de escocês. Estou ali de Cesar. Só que nunca tive coragem de vesti-lo e sair a rua. Como eu disse eu estava, e todos nós estamos, cientes do machismo e da transfobia que nos circunda e que repetimos, e eu cuidadosamente me protegi dessas agressões chamando uma peça que gosto de fantasia, de um excesso justificável.
Eu não andei de kilt a noite, indo pra uma festa, numa situação escusa ao mundo. Eu o usei num dia comum, andei de ônibus, fiz prova, passei em frente à igrejas, faculdades, pontos de ônibus e mercados, e em todos esses lugares eu me sentia observado e julgado. As pessoas paravam de comentar seus causos quando me viam e aí comentavam minha indumentária. Eu virara o causo. Uma piada. Uma alegoria de mal gosto.
Quando percebi eu estava com o maxilar tencionado, o rosto fechado. Estava me protegendo pela fisionomia. Notei então que pela primeira vez na minha vida eu estava com medo de apanhar na rua, de ser agredido por ser eu mesmo.
Um kilt não é uma saia feminina. Mesmo dentro do binarismo que nos aprisiona e em que somos imersos desde o nascimento me dá "respaldo" para usá-lo em público. Mas pelo fato de lembrar uma peça tipicamente feminina (em nosso país) ele se torna inadequado. Já aponta a todos que devo ser gay, promíscuo, sujo, caricato e desprezível. Houve época em que mulheres não podiam usar calças. Esses dias passaram, e esse "direito" lhes foi concedido. Mas um homem usar uma saia é uma transgressão ao patriarcado e a honra masculina. O machismo o condena e todos nós calamos ou reproduzimos seus ecos triunfantes de agressão.
Eu odeio as pessoas, desprezo a sociedade da qual faço parte e me sinto aprisionado em um fluxo que não vejo meios de conter, de reduzir, de transpor.
Cheguei em casa. Minha gata que dormia perto do portão se levantou e veio roçar-se em mim. Minha cachorra veio correndo do quintal e pulou sobre minhas pernas recobertas pelo kilt. Eu odeio as pessoas.
Se você frequenta uma igreja que diz que mulheres não podem usar calças e homens não podem furar as orelhas você é responsável pela travesti que morreu no seu bairro. Se você vai a um bloco de carnaval cuja "fantasia" são homens se travestirem de mulheres de forma jocosa você é responsável pela sua vizinha que foi espancada pelo marido. Se você faz piadas de "bichinha" você é responsável pelo gay que assassinaram na sua cidade. Se você diz que "é gay mas não é bicha" você é responsável pelo gerente do restaurante falar para você parar de beijar seu companheiro em público. Se você é contra a adoção de crianças por casais gays você é responsável pelo órfão que fuma crack na rua. 
Responsabilize-se. Policie-se. Modifique-se. Desconstrua seus preconceitos voluntariamente. Não é ser politicamente correto. É uma questão de humanidade.
A quem quiser eu empresto meu kilt. Ele é bonito, confortável, elegante e de graça te faz ver o mundo de uma maneira muito mais verdadeira."


Despidxs

(texto postado originalmente em 3/11/2013)

6 comentários:

  1. Muito interessante...incrível o que uma simples peça de roupa socialmente "não aceita" pode causar...um outro olhar sobre a sociedade em que estamos inseridos... achei o final do texto um pouco exagerado, mas acredito que essas discussões em relação a preconceitos, gêneros, devem ser abordadas desde criança para que esta visão atual possa ser vista ao menos com mais criticidade. E essa questão dos preconceitos podem ser observados mesmo em grupo de crianças de 4 anos. Meninos não podem brincar de boneca e meninas não podem brincar de lutinha. Por que? ninguém sabe...está socialmente construído e imposto...

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  2. Nossa...gostei do texto, muito bem escrito e com uma discussão pertinente, porque será que temos tantos preconceitos? Por que somos assim? Que educação é essa que nos foi dada para que pensamos e ajamos de forma a não aceitar o que está "fora do padrão"? Sabe, é por isso que gosto de estar e andar pela Unicamp, pois vemos muitas pessoas diferentes, com seus, estilos, cabelos e com pensamentos que divergem do senso comum serem respeitadas, pena que isso não acontece 100% das vezes, contudo, já é um começo. Outros lugares que gosto de estar é na Av. Paulista, na Augusta e na USP, lá é possível ver muitas pessoas diferentes e interessantes.

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  3. Adorei o texto! A principio estava com preguiça de ler e confesso: Não sabia o que era um Kilt e fiquei mal por isso! Todos sabiam? Pesquisei no Google, descobri e segui com a leitura do texto! Sempre achei BIZARRO essa questão de gênero da nossa sociedade! E como a Alice disse no seu comentário acima, na escola é onde mais se vê isso: menino que nao pode usar rosa, menina que nao brinca de boneca, etc. e o texto alem de tratar a questão da "saia" para homens, vai mais alem, e mostra o que isso pode significar em outros meios.

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  4. O texto me fez relembrar situações de opressão muito ruins que já vivi, assim como todas as outras mulheres do mundo...Como é absurdo tudo isso...Essas coisas nos calam, nos imobilizam por mais articulados e organizados que estejamos!!! Me organizo enquanto feminista, mas sinto uma profunda fraqueza ao dividir com as minhas camaradas essa angústia de ser atropelada por uma ideologia nojenta! Me dá fraqueza de ver que independentemente de estarmos juntas e de escracharmos machistas...ainda choramos pela voz mais alta, nos calamos com medo da violência, pensamos duas vezes em sairmos com aquela roupa, lavar a louça para os pais e irmãos sentarem no sofá e ficarem de boa. Isso não significa que eu não acredite na mudança (afinal, que sentido teria a vida e a luta?!), mas que a opressão nos fragiliza pois ela esta em todos os lugares e momentos (dentro e fora do movimento, de casa, da igreja, da escola, da universidade...etc...), e nos nega nossa própria essência, aquilo que somos e não dá pra mudar! Falei sob a perspectiva que me faz parte dos oprimidos, mas me solidarizo com todas as outras pessoas oprimidas e sei que por mais que demore...continuaremos na luta para acabar com essas opressões...

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  5. De fato, a sociedade ainda não está pronta para certos modos de se vestir. As pessoas sempre relacionam as vestimentas ao modo de se comportar ou de pensar, e assim julgam os outros da pior maneira. Entretanto é importante pensar que existe um outro lado na história. Dentro de grupos que se vestem de maneira distinta, está surgindo uma política anti “coxinhas” (http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/1078798-tipicamente-paulistana-giria-coxinha-tem-origem-controversa.shtml), que é exatamente o mesmo comportamento em relação as pessoas que usam calça jeans apertada, camisas polo com números nas costas e relógio de pulso maior que o braço, os coxinhas. Julgar o distinto como ruim é algo comum na nossa atual sociedade. Seja você, um homem de kilt, julgando um coxinha, seja você um coxinha, julgando um homem de kilt. O que precisamos é evoluir, e influenciar a sociedade para a mesma evolução, possibilitando cada indivíduo escolher suas roupas, seguimento político e religioso sem ser julgado e discriminado por realizar tais opções.

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  6. Infelizmente nossa sociedade tem arramas com um longo passado e não se desprende de alguns pré conceitos, mesmo que sendo eles sem sentido, como no caso da vestimenta e ou aparência. Nossa sociedade ainda julga os outros pela primeira impressão e dificilmente se muda depois o que inicialmente se imagina. è de fato uma pena estarmos tão avançados socialmente em alguns pontos e absurdamente atrasados em outros.

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